a “ciganada” moderna, retratada no filme Amici Miei, de Mario Monicelli
Eu olhava pro Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Aldir Blanc, Tim Maia, Angela Ro Ro, Nelson Cavaquinho – tantos outros – e pensava que era aquilo que eu queria ser quando crescesse. Pareciam tão felizes, tão comprometidos com a vida, tão irremediavelmente ligados à poesia… E era exatamente isso o que eu queria ser.
Do outro lado estavam umas mulheres tristes, uns homens apressados, umas crianças amarelas… Todos aqueles que concordavam com a cartilha de Educação Moral e Cívica aplicada nas escolas. Eles viviam quentinhos em suas casas próprias, com suas vidas estáveis, animais de estimação, automóveis e cartões de crédito.
Meus heróis viviam no sereno, compondo canções para seus corações partidos, fazendo troça do sofrimento, fazendo juras de amor eterno, brigando com a polícia e esquecendo-se de tudo na manhã seguinte. Eu me sentia como uma criança que escutava atrás da porta, sem permissão para participar da festa, mas eu escutava tudo. As vozes embargadas, os violões, as serestas, as brigas e as reconciliações. Aprendi a etiqueta da noite. Aprendi que dela nunca se sai ileso. A noite é como o mar.
O mal é a birita?
Diz-se que o termo boemia surgiu em meados do século XVII para designar os ciganos originários da Boémia, um país da Europa Central. Segundo relatos, tratava-se de um povo nômade, descompromissado, desregrado, alheio aos bens materiais e aos grandes projetos.
Apesar de já constituir uma postura política, o termo passou a ser ainda mais pejorativo (e combatido) no século XIX, quando a revolução industrial almejava extirpar completamente a figura do “vagabundo”, transformando os pobres em operários, os remediados em burgueses e os ricos em deuses. Não havia mais espaço para o boêmio, ele era um problema, um parasita, alguém que não contribuía para o desenvolvimento econômico da sociedade.
Naturalmente, grande parte desses enjeitados encontrou abrigo nas artes, sobretudo na música e literatura. Consta que muitos jovens dessa época se inspiraram na obra Scènes de la vie de bohème, do poeta e romancista Henri Murger[i], para assumir sua condição livre de artista.
A reintegração (leia-se desintegração) do boêmio
Sempre foi assim, o boêmio é considerado contraproducente, porque além de não se engajar na paranoia workaholic/consumista, ainda esfrega na cara dos trouxas que a vida lá fora pode ser bem divertida. O boêmio é encarado como um ser socialmente doente, que não faz parte do fluxograma. É um marginal.
Muitos países de primeiro mundo e recentemente o Kassabistão[ii] apostam em políticas públicas de higienização e homogeneização social. Tal como a população de rua e os viciados em crack, o boêmio deve ser educado por meio de restrições que ferem sua liberdade individual, para que e as pessoas de bem não se sintam ameaçadas pela simples possibilidade de que outras pessoas, com outras ideias e ideais, cruzem seu caminho.
Está para ser votado um projeto de lei do deputado estadual Campos Machado (PTB/SP), que proíbe o consumo de bebidas alcoólicas em locais públicos. Isso não fere apenas a liberdade do cidadão que quer tomar incólume a sua cerveja, atinge também em cheio os setores que promovem eventos culturais como quermesses, carnavais de rua e outras celebrações de caráter dionisíaco.
Segundo Guilherme Barros (Isto é Dinheiro), “o setor de bebidas frias já sinalizou que, caso o projeto seja aprovado, deverá reduzir os investimentos a esses eventos em cerca de R$ 200 milhões”.
Talvez o projeto não passe por conta da enorme pressão da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) que ameaçou entrar na justiça caso a lei entre em vigor. Contudo, briga de mercado não significa amadurecimento social.
O que me preocupa mesmo é posição dos meus colegas, vizinhos e gente que anda ao meu lado na calçada. Faz uns meses, eu estava numa tarde com a minha filha na pista de skate que fica na esquina da Av. Dr. Arnaldo e a Rua Cardoso de Almeida, em São Paulo, rolava um show com várias bandas de rock, lá estavam muitos adultos com seus filhos. Estranhei a ausência de ambulantes vendendo cerveja, então atravessei a rua a comprei uma longneck. Quando me sentei na arquibancada, um guarda municipal me comunicou a infração “é proibido consumir bebidas alcoólicas aqui”. Olhei para o lado e vi várias pessoas escondendo furtivamente suas longnecks. “Você pode tomar do outro lado do portão” ele disse. “Mas a minha filha está aqui dentro e eu preciso ficar de olho nela” argumentei. Ele deu de ombros e disse que os próprios frequentadores da praça fizeram um abaixo assinado solicitando a proibição.
Não concordo mais com o famoso verso de William Blake[iii] “só o caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria”, não defendo o consumo abusivo de álcool e a tomada das ruas por hordas de bêbados desordeiros. Defendo o poder de escolha acima de tudo e a possibilidade de haver outros pontos de vista que fogem à regra mercantilista de que tempo é dinheiro e dinheiro é tudo.
Em São Paulo, mesmo com a lei em fase de aprovação, a restrição acontece o tempo todo. Na Virada Cultural e na tradicional festa da Achiropita já não podemos consumir nada que contenha álcool. Caso a lei seja aprovada, fica proibida a caipirinha à beira-mar e o vinho na calçada.
Foi assim com a lei do “psiu”. Foi assim com a lei antifumo. Higienização e homogeneização. É o triunfo da sociedade de consumo sobre a vida. É a vitória do espírito reacionário, que imerso em sua ignorância não suporta ver os pés de quem sobe à superfície em busca de oxigênio.
É doce viver no mar[iv]. Pelo menos pra mim.
[i] Louis-Henri Murger (Paris, 1822 – 1861) a obra citada deu origem à famosa ópera La Bohéme, de Puccini e também ao filme La Vie de la Bohéme, de Aki Kaurismäki.
[ii] Referência à gestão reacionária do prefeito Gilberto Kassab em São Paulo.
[iii] William Blake (Londres, 1757 – 1827) o verso citado faz parte do poema Provérbios do Inferno.
[iv] Referência à canção de Dorival Caymmi, “É doce morrer no mar”.
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Esta crônica foi publicada originalmente no site Araçatuba News.